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No dia 04/05/2018, o STJ publicou o acórdão proferido no julgamento do Resp 1.657.156/RJ, que havia sido submetido à sistemática dos recursos repetitivos para a definição do tema no 106, concernente à obrigatoriedade do Poder Público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS.

É conhecido o quadro de ajuizamento em massa de demandas em que se pleiteiam as mais diversas prestações sanitárias, muitas das quais não incorporadas para dispensação regular.

Computando também os casos ajuizados em face de planos de saúde, em 2017 apenas o TJRJ recebeu 16.491 novas ações na área de saúde, que foram incorporadas a um acervo total de 566.229 feitos da espécie em tramitação naquele Tribunal. Não se trata, todavia, de uma realidade tão somente fluminense, mas sim nacional.

A experiência prática, corroborada pelos dados empíricos existentes, indica que tais demandas são amplamente acolhidas pelo Judiciário. O entendimento dos Magistrados, em geral, quanto a que prestações estariam inseridas no conteúdo do direito constitucional à saúde parece ser bastante abrangente. O índice de procedência já foi estimado em cerca de 90% dos processos1.

Nesse cenário, o volume de recursos alocados para satisfação de decisões na matéria é cada vez mais expressivo. Segundo dados do TCU, de 2008 a 2015, o gasto da União na aquisição de medicamentos e insumos para cumprimento das decisões saltou de aproximadamente R$ 70 milhões para R$ 1 bilhão, o que representa um aumento de mais de 1.300%.

As críticas quanto à possível ineficiência alocativa e quanto à eventual violação à isonomia no tratamento dos pacientes que possuem conhecimento e recursos para recorrer ao Judiciário frente aos que dependem exclusivamente do SUS já foram suscitadas em diversos artigos da literatura. Aqui não se almeja revisitá-las, mas apenas comentar os principais aspectos do julgado do STJ.

No referido julgamento, o STJ decidiu que constitui obrigação do Poder Público o fornecimento de medicamentos, ainda que não incorporados pelo SUS, desde que presentes, cumulativamente, três requisitos: a) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; b) incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e c) existência de registro do medicamento na Anvisa.

Ao estabelecer parâmetros para a apreciação de tais demandas, o julgado traz alguns avanços para a melhor equalização da judicialização da saúde. Citem-se três aspectos positivos:

1) Consolida o entendimento, que já era consagrado no STF e no STJ, quanto à necessidade de comprovação da incapacidade financeira para arcar com aquele tratamento;

2) Assenta que, segundo a legislação infraconstitucional, o Poder Público não poderia ser obrigado a fornecer medicamentos sem registro na Anvisa. Com efeito, a Lei no 6.360/76 já impedia a importação de medicamentos, assim como a sua exposição ao consumo, sem a manifestação favorável do Ministério da Saúde. Em acréscimo, a Lei no 8.080/90 expressamente veda a dispensação de medicação pelo SUS sem que haja registro na Anvisa. Assim, o STJ busca afastar o corriqueiro cenário de o Poder Público ser condenado a entregar medicamentos que sequer poderiam ser comercializados no país, situação que usualmente leva a arresto das contas dos entes e à aquisição, pelos particulares, do medicamento com dinheiro público;

3) Corrobora que a concessão de medicamentos não incorporados ao SUS é uma medida excepcional, a exigir o cumprimento de requisitos estabelecidos pela Corte.

Restam, por outro lado, preocupantes incertezas, que suscitam críticas ao julgamento exarado pela Corte. As principais serão a seguir expostas.

Inicialmente, a matéria tratada não restou pacificada pelo julgado do STJ, uma vez que também possui natureza constitucional. O STF já aprecia, em sede de repercussão geral, o RE 657.718, quanto ao dever de fornecimento de medicamentos não registrados pela Anvisa, e o RE 566.471, que concerne ao dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a quem não possui condições financeiras para o adquirir. O ponto não escapou à atenção dos ministros do STJ, que defenderam a continuidade do julgamento suscitando, dentre outros argumentos, que o tema analisado pelo STJ supostamente seria mais abrangente, alcançando medicamentos de alto custo ou não.

No entanto, embora a tese do STF formalmente fale em “medicamento de alto custo”, os votos proferidos pelos ministros até o momento não se restringiram a tratar somente de itens de elevado valor. Pelo contrário, os ministros Luis Roberto Barroso e Edson Fachin destacaram a atecnia da expressão “alto custo” em relação às normas vigentes no SUS. Portanto, ao fim, as questões a serem discutidas pelo STF se sobrepõem àquelas apreciadas pelo STJ, haja vista que o STF, a toda evidência, também está debatendo em que cenários o Poder Público deveria fornecer medicamentos que estão fora da política farmacêutica estabelecida, independentemente do valor do bem.

No mais, a decisão do STJ consolida uma tendência de preocupante excessiva relativização da política farmacêutica estabelecida. A Constituição define que o direito à saúde será garantido mediante políticas que visem ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. De acordo com a Lei do SUS, a política farmacêutica se organiza por meio da dispensação de medicamentos cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou em listas periodicamente expedidas pelo Poder Público.

Ocorre que o entendimento adotado pelo STJ permite que as prioridades eleitas na política farmacêutica sejam desconsideradas, no caso concreto, com base apenas no laudo assinado pelo profissional que acompanha o paciente. Em outros termos, a política pública pode ser flexibilizada pela caneta de cada médico do país.

De fato, ao mesmo tempo em que o Judiciário releva pouca deferência à política farmacêutica estabelecida ou às prioridades eleitas pelos gestores do SUS, concede significativa deferência à apreciação técnica isolada do médico que acompanha o paciente. Os riscos relacionados à postura são diversos. O primeiro se refere à natural possibilidade da divergência técnica razoável entre diferentes especialistas quanto à melhor forma de tratar uma enfermidade. O segundo concerne à incerteza de que o médico que respalda uma demanda individual esteja atualizado em relação ao melhor conhecimento técnico ou às melhores evidências científicas, bem como de que seu entendimento não esteja influenciado por conflitos de interesse ou por estratégias de marketing da indústria farmacêutica2. O terceiro problema se refere ao fato de que não se poderia esperar que um profissional que não é o responsável por elaborar uma política de saúde considere na sua prescrição questões como a necessidade de sustentação financeira do sistema de saúde como um todo ou a possibilidade de universalização, pelo SUS, daquela prestação para todos os portadores daquela enfermidade no país.

O entendimento fixado pelo STJ dificulta, assim, que se adote a metodologia da medicina baseada em evidências, uma vez que as melhores análises científicas podem ser descartadas com respaldo apenas na opinião ou na experiência clínica de um único profissional isoladamente.

Corre-se o risco, nesse passo, de que o Judiciário eventualmente realoque crescentes parcelas orçamentárias endereçadas à saúde em favor de tratamentos que apresentem duvidosa relação custo-efetividade, que é um dos critérios legais para a incorporação de novas tecnologias no SUS. Para que tal cenário não ocorresse, os requisitos para dispensação de um medicamento fora da previsão do SUS deveriam ser mais restritivos, exigindo-se maior robustez probatória e considerando-se, por exemplo, o fato de a droga já ter sido ou não objeto de análise pela Conitec.

Tal questão conduz à terceira crítica. Citando o voto proferido pelo ministro Luis Roberto Barroso no já mencionado RE 566.471, o acórdão do STJ exorta que os órgãos julgadores, após o trânsito em julgado, comuniquem a decisão ao Ministério da Saúde e à Conitec para que realizem estudos quanto à viabilidade de incorporação do medicamento ao SUS.

O julgado não esclarece, todavia, qual deveria ser o posicionamento do magistrado quanto aos casos – bastante frequentes – em que se requer o fornecimento de um medicamento que já fora objeto de análise pela Conitec, e que recebeu expressa manifestação desfavorável do órgão técnico quanto à possibilidade de seu fornecimento gratuito pelo SUS. Em tais hipóteses, a Conitec já indicou a inviabilidade de universalização, ao menos naquele momento histórico, da prestação para todos os usuários do SUS, sendo certo, portanto, que o fornecimento para um paciente individualmente considerado macularia o caráter universal e igualitário do sistema.

De acordo com o voto proferido pelo ministro Barroso, demandas de tal espécie não deveriam, em regra, ser acolhidas pelo Judiciário. O julgado do STJ, por sua vez, não abordou a questão, limitando-se a sugerir o envio de comunicações ao Ministério da Saúde e à Conitec, o que, se não for acompanhado da deferência do Judiciário quanto às análises da comissão, resultará apenas no reiterado e possivelmente ineficiente encaminhamento de expedientes, por todos os Magistrados do país, àquela unidade técnica.

Assim, apesar de estabelecer alguns contornos restritivos para a racionalização das demandas em face do Poder Público na área da saúde, o julgamento proferido pelo STJ apresenta incompletudes que precisam ser melhor enfrentadas pelo STF para que a tutela do direito fundamental à saúde de alguns não implique prejuízo ao direito à saúde de outros, em especial daqueles que somente dependem do SUS para ter suas necessidades atendidas.

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1 Cf. WANG, Daniel Wei L. Right to health litigation in Brazil: The problem and the Institutional Responses, Human Rights Law Review, 15, pp. 617-641, 2015, p. 623. Também PRADO, Mariana Mota. The Debatable Role of Courts in Brazil’s Health Care System: Does Litigation Harm or Help?, Journal of Law, Medicine and Ethics, Vol. 41, n.1 (Symposium: Global Health and the Law), pp. 124-137, Spring 2013, p. 125.

2 No mesmo sentido, WANG, Daniel Wei L. Op. cit. p. 624.

VICTOR AGUIAR DE CARVALHO – Doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procurador do estado do Rio de Janeiro e advogado. Foi também Visiting Researcher na Harvard Law School.

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